[CamaraDas] Revista Cult: Frei Betto e a traição do PT

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  • Date: Wed, 20 May 2015 08:59:37 -0300

A vocação literária de Frei Betto
Conhecido por sua atuação política contra o regime militar, o autor de
"Batismo de sangue" fala de literatura, política e critica os desvios de
rota do PT

<http://revistacult.uol.com.br/home/tag/religiao/>


Prestes a completar 71 anos e com sessenta livros publicados, Frei Betto
descobriu o amor pela escrita muito cedo, quando suas redações escolares
(ou composições, como se dizia à época) fizeram os professores
identificarem seu talento - mas só se tornou um autor "graças aos generais
brasileiros".

Integrante da Ação Católica, grupo que se opunha ao regime militar, Carlos
Alberto Libânio Christo foi preso duas vezes: em 1964 e no período
1969-1973, quando estava no Rio Grande do Sul e participava de uma rede
clandestina formada pelos dominicanos para apoiar os insurgentes.

Dessa segunda experiência, resultaram dois livros de cartas, atualmente
reunidas num único volume intitulado *Cartas da prisão*. Começava a se
desenhar aí o perfil do religioso e militante que publicou vários títulos
de caráter memorialístico - entre eles, *Batismo de sangue*, que narra os
episódios que levaram ao assassinato do ativista Carlos Marighella e que
daria origem ao filme homônimo de Helvécio Ratton.

O cruzamento de atuação política com religião aproximaram Frei Betto do
cristianismo progressista dos dominicanos e da teologia da libertação, mas
jamais sufocaram sua verdadeira vocação - a literatura. Vocação que foi
alimentada pela mãe, Maria Stella Libânio Christo, cristã progressista e
autora de livros sobre culinária (entre eles, o clássico *Fogão de lenha*),
e pelo pai, Antônio Carlos Vieira Christo, advogado, cronista e ferrenho
anticlerical, que chorou copiosamente quando soube que o filho ia ingressar
na ordem dos dominicanos, mas que mais tarde se tornaria "fã da teologia da
libertação, de D. Pedro Casaldáliga", segundo Frei Betto.

Na entrevista a seguir, concedida no convento dos dominicanos, no bairro
paulistano de Perdizes, o autor de *Minas do ouro* fala da preocupação de
dissociar a ficção das questões ideológicas - que continuaram presentes em
suas intervenções públicas, levando-o a participar do programa Fome Zero,
durante o governo Lula, mas não o impedindo de ser um crítico dos desvios
de rota do PT e da timidez da esquerda.

*CULT -* *Quando a literatura e a escrita aparecem na sua vida?*

*FREI BETTO *Comecei a escrever muito cedo. Sempre conto que, aos oito
anos, quando estava no grupo escolar, minha professora, Dercy Passos,
entrou na sala com um maço de composições (belo nome que se usava então
para as redações) e, ao fazer a correção, deixou a minha por último. No
fim, disse à classe: "Vocês deveriam fazer como Carlos Alberto; ele escreve
as próprias composições, não pede para os pais fazerem por ele". Aí meu ego
bateu lá em cima... E mais tarde, no primeiro ano de ginásio, no Colégio
Marista, meu professor de português me chamou e disse: "Você só não será
escritor se não quiser". Só que, para mim, ser escritor era coisa de outro
mundo, para gente muito erudita. Foi daí que me meti no jornalismo.
Comecei, em 1966, por onde muitos almejavam concluir carreira: a revista
*Realidade*.

Mas só me tornei autor graças aos generais brasileiros, ao escrever *Cartas
da prisão* - que foram publicadas primeiramente no exterior [com outros
títulos e em volumes separados], primeiro na Itália, em 1971, em seguida na
França e em outros países. Depois, em 1977, saíram no Brasil.

*CULT** A experiência política marcou muito sua literatura. Em que momento
surge uma ficção "pura", sem essa preocupação?*

*FREI BETTO* A militância me dificultou muito na ficção, que é o que mais
gosto de fazer. Tive de lutar para me desfazer dessa camisa de força. Meu
primeiro romance foi *O dia de Ângelo*, onde ainda havia essa camisa de
força, tinha um pouco das minhas experiências em celas solitárias. Depois
vieram *Hotel Brasil* e *Minas do ouro* - em que me soltei mais.

*CULT* *Essa mudança coincide com o período posterior à queda do muro de
Berlim, quando as grandes questões ideológicas declinam. É só depois disso,
por exemplo, que você escreve Hotel Brasil, um romance policial. Há alguma
relação?*

*FREI BETTO *Até onde consigo enxergar conscientemente, queria enfrentar o
desafio de fazer um policial - duplo desafio de criar a ficção e o
mistério, conduzir o leitor até o fim sem que ele descubra quem é o
assassino. Foi isso que passou na minha cabeça. Não tive a consciência de
que, com a crise das ideologias, iria fazer literatura "pura".

Reservo 120 dias do ano só para escrever. Não são dias seguidos, mas são
sagrados. E muitas vezes estou fazendo ficção e fico árido; daí,
inevitavelmente, leio Machado de Assis. Ele me reaquece, provoca minha
inventividade. Fui um leitor voraz de Jorge Amado e Erico Verissimo, de
quem era amigo e que me ajudou a montar uma biblioteca na penitenciária em
que estive preso - e fui muito marcado pela literatura francesa, Camus, o
Sartre do teatro e de *A náusea*.

*CULT* *Falando em Jorge Amado e Sartre, que eram escritores muito
engajados, como você avalia a esquerda de hoje?*

*FREI BETTO* A esquerda hoje é uma raridade. Conheci muito intimamente o
mundo socialista, na Nicarágua, depois em Cuba, onde durante dez anos,
entre 1981 e 1991, fiz um trabalho institucional de reaproximação entre
Igreja e Estado. Com a queda do muro de Berlim, a esquerda acadêmica, que
nunca teve um trabalho popular, foi cooptada pelo neoliberalismo, a ponto
de hoje acontecer uma enorme crise econômica na Europa Ocidental e não
haver qualquer proposta de esquerda.

O principal problema filosófico hoje é a desistoricização do tempo. Isso se
reflete na esquerda mundial, que está perdendo o horizonte histórico (não
tem utopia, não tem projeto), e também no plano pessoal - a dificuldade de
se ter projeto pessoal na vida profissional, artística, afetiva (todos
ficam vulneráveis a qualquer dificuldade na relação conjugal).

Isso está nos levando à falta de esperança, e faz com que a discussão
política desça do racional ao emocional. Sempre participei de discussões
políticas e nunca vi nível de animosidade tão forte como agora, porque se
apagou o horizonte histórico.

Não é fácil ser de esquerda em um mundo tão sedutor quanto o do capitalismo
neoliberal. Daí o problema do PT, que foi perdendo o horizonte histórico de
um projeto Brasil e trocando-o pelo horizonte imediato de um projeto de
poder.

Frei Betto, em frente ao Palácio do Planalto: "Não há caldo de cultura para
impeachment ou golpe militar" Créditos: Foto José Cruz/ Agência Brasil

*CULT* *Quando percebeu que o PT abandonou seu projeto inicial?*

*FREI BETTO* Isso desaparece na campanha de 2002, quando o PT faz a opção
de assegurar a governabilidade pelo mercado e pelo Congresso - daí as
alianças e a "Carta aos Brasileiros", que na verdade é a "carta aos
banqueiros". Ali, o PT abandona sua matéria-prima, que são os movimentos
sociais pelos quais deveria ter assegurado a governabilidade, como fez Evo
Morales na Bolívia, que não tinha apoio no congresso, se apoiou nos
movimentos sociais e, através deles, conseguiu mudar o perfil do congresso.
Hoje, ele tem apoio dos dois, é o presidente mais consolidado de toda essa
safra progressista. O PT optou pelo mercado e pelo Congresso. Agora, está
refém dos dois e pagando um preço muito alto. Tanto que chamou um homem do
mercado para ver se melhora a economia e entregou a parte política para o
PMDB.

*CULT** Se você já havia se decepcionado desde a "Carta aos Brasileiros",
por que participou do programa Fome Zero, do governo Lula?*

*FREI BETTO *Achei que a "Carta aos Brasileiros" fosse uma coisa tática,
que, uma vez eleito, o PT faria reformas estruturais, tributária, agrária,
algum tipo de reforma. Estava altamente entusiasmado. Sempre fui convidado
para trabalhar em administração, mas nunca quis trabalhar nem para a
iniciativa privada nem para governos. Gosto dessa vida cigana, solta.
Quando Lula foi eleito e me convidou para o Fome Zero, achei que trabalhar
com os mais pobres entre os pobres - os famintos - se enquadrava em minha
perspectiva pastoral e tive todo apoio de meus superiores dominicanos e até
de Roma.

Fiquei dois anos e, de repente, o governo matou o Fome Zero para
substituí-lo pelo Bolsa Família. Tive então a certeza de que essa opção
contrariava a tudo aquilo que o PT vinha pregando desde a fundação. O Fome
Zero era um programa emancipador, o Bolsa Família é compensatório. O Fome
Zero ia mexer na estrutura do país e por isso foi boicotado pelos
prefeitos. Era coordenado por comitês gestores municipais, não passava
pelos prefeitos, não havia como usar os recursos para fazer jogo
eleitoreiro, então os prefeitos se rebelaram, pressionaram a Casa Civil,
que pressionou Lula. No fim, Lula cedeu e eu caí fora.

*CULT* *Você chegou a escrever que o PT faz "populismo cosmético".*

*FREI BETTO* O erro do Lula foi ter facilitado o acesso do povo a bens
pessoais, e não a bens sociais - o contrário do que fez a Europa no começo
do século 20, que primeiro deu acesso a educação, moradia, transporte e
saúde, para então as pessoas chegarem aos bens pessoais. Aqui, não. Você
vai a uma favela e as pessoas têm TV a cores, fogão, geladeira, microondas
(graças à desoneração da linha branca), celular, computador e até um
carrinho no pé do morro, mas estão morando na favela, não têm saneamento,
educação de qualidade. É um governo que fez a inclusão econômica na base do
consumismo e não fez inclusão política. As pessoas estavam consumindo, o
dinheiro rolando e a inflação sob controle, mas não se criou
sustentabilidade para isso. Agora a farra acabou, está na hora de pagar a
conta e chama-se o Joaquim Levy [ministro da Fazenda].

*CULT* *Os católicos de esquerda foram preteridos pelo PT por conta dos
compromissos com os evangélicos?*

*FREI BETTO* Lula sempre reconheceu que as Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) tiveram mais importância na capilaridade do PT pelo território
brasileiro do que o sindicalismo. Nos anos 80, havia núcleos do PT no fundo
do Maranhão ou do Amazonas graças a essas comunidades. Enquanto foram
atuantes, não havia evasão de fiéis para as igrejas pentecostais. Foi o
fato de o Pontificado de João Paulo 2º reprimir as CEBs que fez com que os
bispos já não as patrocinassem e que muitas pessoas bandeassem para as
igrejas evangélicas.

Nas CEBs, o pobre se sente à vontade. Mas numa igreja, não. Você vai à
paróquia e só tem classe média, tem a patroa, tudo é centrado no padre -
não há convivência como numa comunidade. Ainda existem as CEBs, mas não com
aquela força de antes.

As CEBs produziram muitos militantes, como Erundina, Vicentinho, Chico
Alencar. As figuras éticas [do PT] têm uma tradição de igreja. O PT é
formado por três segmentos: o pessoal da Igreja, o do sindicalismo e o da
esquerda - remanescentes da esquerda da época da ditadura (Zé Dirceu, Paulo
Vannuchi etc.). O pessoal das CEBs, por formação pessoal, nunca teve muita
gana de poder. Aos poucos, ficaram em segundo plano.

Por outro lado, os evangélicos estão armando uma grande estratégia de
domínio da política brasileira, que se resume ao seguinte: "Nossos
princípios religiosos exigem determinadas atitudes morais e nós só podemos
impor isso de duas maneiras: convertendo toda a nação (o que é impossível)
ou tendo o poder de fazer a lei civil obrigar as pessoas a agirem como nós
queremos (já que a lei é universal)". Se você tem a caneta, você transforma
seu princípio religioso em lei.

Frei Fernando, Frei Betto, Frei Ivo e Frei Tito (da esquerda para a
direita), durante julgamento dos dominicanos em 1971 Créditos: Divulgação

*CULT* *Você vê sinceridade religiosa nessas posturas ou é manipulação de
sentimentos reativos dos fiéis?*

*FREI BETTO* As duas coisas. Há os fundamentalistas e há os que são
meramente oportunistas. Estes perceberam que aquilo é um manancial de
votos. O pastor diz claramente: "o candidato é esse". Isso não acontece na
Igreja Católica - aconteceu lá nos anos 30, com a LEC (Liga Eleitoral
Católica), em que o bispo dizia "isso sim, isso não". Nas igrejas
evangélicas, há hoje um direcionamento muito explícito. Muitos políticos
estão ali por fundamentalismo, muitos por oportunismo.

*CULT* *Qual sua posição sobre a liberação do aborto?*

*FREI BETTO* Defendo o modelo francês. Tudo deve ser feito pelo Estado para
convencer a mulher a não abortar, mas a decisão final é dela. Esse modelo,
em primeiro lugar, fez com que acabasse o aborto clandestino e, portanto,
diminuísse o índice de mortes. Em segundo lugar, o fato de o médico e o
ministro da confissão religiosa da mulher induzirem-na a não abortar
aumentou o índice de mulheres que foram à procura do aborto, mas decidiram
assumir o filho. Eu mesmo tenho experiência pessoal disso. Já recebi vários
adolescentes nessa situação e sempre disse o seguinte: "Tenha o filho e
deixe aqui que eu crio, pode deixar na porta do convento". Nunca ninguém
trouxe e hoje tenho uma porção de apadrinhados... Tenho uma posição aberta,
acho que aborto em última instância é um direito da mulher e não pode ser
criminalizado de jeito nenhum.

*CULT * *Mas isso não vai contra os dogmas da Igreja?*

*FREI BETTO* Não é dogma. Se fosse, a Igreja também teria de ser contra a
guerra, não haveria capelão militar e, nos EUA, seria contra pena de morte.
Na verdade, há uma ambiguidade na teologia. São Tomás de Aquino aceitava o
aborto até quarenta dias após a fecundação, porque ainda não haveria ali,
propriamente, uma pessoa - e ele é a doutrina oficial da Igreja. A
discussão teológica não está fechada. Tanto que escrevi um texto sobre isso
em 1988, que circulou na CNBB, e nunca recebi advertência. Aliás, nesse
texto digo que "se homem parisse, aborto seria um sacramento"...

*CULT* *E em relação ao casamento homossexual? *

*FREI BETTO* O fundamento da relação de qualquer ser humano é o amor - e,
se há amor, há Deus. O tema da sexualidade e da família está congelado na
Igreja Católica desde o século 16. Tentou-se várias vezes abrir esse tema
nos concílios, mas ele foi podado. Acho que o papa Francisco, muito
inteligentemente, está conseguindo quebrar esse preconceito. Em vez de
falar "vamos aceitar o casamento homoafetivo", ele fala "esses casais têm
filhos, as crianças não têm direito à catequese?". Com isso, já abriu o
caminho. Ele acaba de receber no Vaticano um transexual espanhol que foi
discriminado pelos bispos e que agora vai casar. Foi um escândalo na
Espanha, tanto que dizem que a direita de lá reza assim para o papa:
"Senhor, iluminai-o ou eliminai-o".

*CULT* *Outro tema atual que divide a opinião pública é a redução da
maioridade penal. Qual sua posição?*

*FREI BETTO* Criminalizar a juventude é uma maneira cômoda de se omitir
naquilo que deveria ser feito para evitar a criminalidade juvenil: dar
educação. É o caso das UPPs do Rio: a polícia sobe à favela, mas não sobem
escola, teatro, cinema, esporte, música - e o traficante não quer que seu
filho seja bandido, quer que ele seja doutor. Uma geração já poderia ter
sido salva no Rio se os equipamentos sociais também tivessem subido às
favelas.

*CULT* * C**omo militante e ex-preso político, como vê o clamor pelo
impeachment da presidente e pela volta da ditadura?*

*FREI BETTO* Não me preocupam ameaças de impeachment ou golpe. Não há caldo
de cultura. Os militares nem saem de farda na rua. Militar, no Brasil,
antes andava orgulhosamente de farda, até para arrumar namorada...

O que me preocupa é a despolitização da juventude brasileira. Os segmentos
de esquerda deveriam estar preocupados com a politização, como houve
imensamente nos anos 70 e 80. Não há mais formação de consciência crítica -
e aí o pessoal vai no emocional, no oba-oba da volta dos militares, sem ter
ideia do que foi a ditadura, que pode parecer que foi tranquila, mas é
porque havia uma censura brutal. Estamos voltando a esse nível de
desinformação, a esse horror à política.


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*:::*
*Niquele*

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