Quarta, 20 de outubro de 2004. DORA KRAMER A questão do poder civil <mailto:dkramer@xxxxxxxxxxxxxx> Dora Kramer Não basta manifestar indignação difusa, disseminar a versão da crise ou ainda mandar que o Exército e o Ministério da Defesa se expliquem ao País. Na condição de comandante-em-chefe das Forças Armadas, o ideal seria que o presidente Luiz Inácio da Silva assumisse uma posição oficial a respeito da nota (oficial) do Exército que, a propósito de reagir à publicação de fotos inéditas de Vladimir Herzog pouco antes de ser morto no DOI-Codi, há 29 anos, em São Paulo, faz um libelo da ditadura e considera seus métodos legais e legítimos. Trata-se, no momento, menos do caso em si, e muito mais da afirmação da autoridade do poder civil sobre a estrutura militar. Não por qualquer risco ao regime ou abalo institucional, mas para aproveitar a oportunidade e repor as coisas em seus devidos lugares. Tentar consolidar o projeto de subordinação das Forças Armadas aos princípios de uma sociedade democrática, iniciado com a criação da pasta da Defesa e a entrega de seu comando a um ministro civil. Do jeito como as coisas foram postas nesse episódio, o Exército pontuou uma autonomia política não condizente com sua condição de linha auxiliar da cidadania e, na prática, se contrapôs a uma decisão de Governo (aí incluídos os três poderes) que considerou o Estado responsável pelos crimes - assim os qualificou quando concordou em indenizar as vítimas - cometidos durante o regime militar. A nota classifica como "revanchismo" a reabertura do debate em virtude da divulgação das fotos de Herzog e ainda considera "as medidas tomadas pelas Forças legais" uma "legítima resposta aos que se recusaram ao diálogo". Ainda que o Exército esteja aí se referindo à luta armada - o que nem de longe serve para justificar a tortura - , comete erro de tempo e de pessoa, pois foi em nome da liberdade e da abertura do diálogo entre Estado e Sociedade que gente como Vladimir Herzog lutou pela devolução do Brasil e todos os brasileiros, via redemocratização. Os jornais de ontem registraram informações repassadas por assessores presidenciais, dando conta da irritação do presidente Lula com o teor da nota e com a atitude - nenhuma - do ministro da Defesa, José Viegas. Segundo os auxiliares, o presidente avaliou que Viegas "deu a impressão" de que não tem autoridade sobre o Exército. Não é bem assim. A "impressão" o ministro firmou desde o início de sua gestão, criticada abertamente no meio militar que recua apenas quando, nessas ocasiões, o ministro vem a público defender a alocação de mais verbas do Orçamento para as Forças Armadas. A manifestação independente do Exército agora consolidou a sensação como certeza. E, a menos que o Governo retome as rédeas e dê ele o rumo da conduta militar (não apenas na questão Herzog, pois há também o caso dos documentos e da investigação sobre os mortos na guerrilha do Araguaia), a existência do Ministério da Defesa acabará por perder o sentido, pois vai se invertendo sua concepção original. Diga-se, não é um defeito exclusivo do Governo Lula. Embora tenha o mérito da execução da idéia, o então presidente Fernando Henrique Cardoso já começou errando ao indicar o primeiro titular da pasta sob o critério da negociação político-partidária, com o PFL, para abrigar o senador Élcio Álvares. Se por causa desse equívoco de origem ou por erros continuados, não importa, fato é que o Ministério da Defesa jamais adquiriu a embocadura necessária à correta implementação do projeto de adequar a organização militar brasileira aos ditames do poder civil. Toada antiga No afã de convencer o eleitorado das vantagens de reelegê-la prefeita, Marta Suplicy talvez não tenha se dado conta, mas está usando os mesmíssimos argumentos da velha política do cabresto cada vez menos aceita nos grandes centros, entre os quais São Paulo é a maior expressão. "O presidente Lula envia recursos quando tem sintonia com os objetivos daquele prefeito ou daquele governador", disse Marta, dando a entender ao cidadão paulistano que, se ele preferir José Serra, a cidade ficará sem verbas federais. Foi assim, exatamente desse jeito, que gente bastante conhecida de todos nós sempre tratou, e trata, o eleitorado: na base da exibição de relações exclusivas com o poder e, por conseqüência, do monopólio da capacidade de movimentar os instrumentos do Estado. Na realidade, o presidente Lula não "envia recursos" por causa da sintonia com este ou aquele governante. Em boa medida, o Governo federal distribui seus recursos por obrigatoriedade legal e responsabilidade administrativa. Aliás, o descumprimento dessas regras pode, em casos mais acentuados, configurar crime de responsabilidade, uma das justificativas para alegação de impedimento de um governante. A esse tipo de prática - de defender, ou levar pessoas a assumir, uma determinada posição política em função das vantagens matérias que se possa obter - dá-se o nome de clientelismo. Não fica bem para alguém como Marta Suplicy, com toda uma trajetória profissional a serviço das modernidades civis. _____ Dora Kramer escreve no DIA de terça-feira a domingo CocoLoco BM__AthCaretNickeLeus Locus Pinellius Zemborian, também conhecido como CocoLoco, fã incondicional de rap, afoxé, heavy metal e música instrumental, é presidente do Departamento de Geloterapia Cibernética e Terrorismo Digital do Partido dos Revolucionários Flamenguistas.