O PT que perde o PT Nelson Breve O partido deixou de ser uma alternativa de ruptura "com tudo isso que aí está". Tornou-se um símbolo de mudança: a mudança das pessoas para não mudar as estruturas. Nunca me filiei a nenhum partido nem pertenci a qualquer tendência política. Não que me orgulhe disso, mas meu modo de ver o mundo sempre foi independente. Já fui humilhado por comunistas por criticar a reserva de mercado para a informática e taxado de comunista por conservadores ao defender a reforma agrária. Nunca fui petista, mas, como proclamava aquela propaganda do Duda Mendonça, sempre tive um pouco de PT nas minhas opiniões, princípios e convicções. Lembro que em 1989 fiquei encantado e emocionado ao ver aquelas barraquinhas nos comícios vendendo camisetas, estrelinhas e outras bugigangas para arrecadar o dinheiro das campanhas. Quanta gente não sacrificou parte da sua vida para dar condições ao partido de enfrentar os aliados do poder econômico, que sempre tiveram os recursos que precisaram para vencer as eleições. Os comícios eram festas bonitas, cívicas, animadas por artistas que acreditavam naquela alternativa de fazer política. A militância era um ritual de libertação. As coisas começaram a mudar quando o PT sentiu mais de perto o cheiro do poder. Percebi isso nitidamente na eleição de 1992. O senador Eduardo Suplicy disputava a sucessão de Luiza Erundina contra Paulo Maluf. Na véspera do segundo turno, a eleição estava praticamente definida em favor de Maluf. Antevendo o que estava por vir, cheguei ao limite do desespero e decidi fazer o que estava ao meu alcance para tentar impedir o desastre: pela primeira, e única, vez até hoje, encarei o trabalho de boca-de-urna. Comecei a observar as mudanças no interior do PT naquela eleição. Quando cheguei ao comitê para pegar o material de campanha, uma senhora negra, de São Miguel Paulista (Zona Leste de São Paulo), típica representante das comunidades de base, discutia com a mocinha encarregada de organizar a distribuição dos pacotes, típica classe média paulistana, que parecia estar curtindo uma nova moda. - Quero saber onde estão precisando de gente - disse a senhora. - Da onde a senhora é? - Sou de São Miguel. - Então, a senhora tem que procurar o pessoal de lá. - Mas lá já tem bastante gente. Quero ajudar onde estão precisando. Parece que está faltando na Zona Norte. - Não, minha senhora. Se a senhora é da Zona Leste, tem que procurar o pessoal da Zona Leste - insistiu a mocinha. No dia da eleição, devo ter caminhado mais de 50 km entre seções eleitorais da avenida Paulista, Brigadeiro Luiz Antonio e adjacências. Abordei centenas de eleitores tentando convencê-los a votar no candidato petista. Pode ser que tenha influenciado alguém, mas o que mais ouvi foi: "Se o Suplicy fosse de outro partido votaria nele, mas no PT não voto. Chega de PT!". O que mais me incomodou, no entanto, foi a falta de militantes na boca-de-urna. Só tinha uma garotada buzinando carro e balançando bandeiras, tal como se manifestam torcedores nas finais dos campeonatos de futebol. Naquela campanha, apareciam os primeiros sinais da mudança de base social do PT. Ali, o partido começou a se profissionalizar. A militância voluntária, que acredito ainda exista em algum canto hoje, foi sendo substituída pela militância de gabinete: os assessores de vereadores e secretários pagos com dinheiro público ou dos sindicatos. As lideranças comunitárias deixaram de ser protagonistas. Foram substituídas por representações das classes médias. O PT foi se integrando ao sistema de poder. Assimilou a forma, o jeito e os métodos de fazer política dos políticos que criticava. É a mesma maneira de arrecadar recursos, são as mesmas técnicas para "vender" os candidatos, os mesmos cabos eleitorais pagos, os mesmos compromissos com o poder econômico, as mesmas alianças pragmáticas e o mesmo modo de governar. O PT deixou de ser uma alternativa de ruptura "com tudo isso que aí está". Tornou-se um símbolo de mudança: a mudança das pessoas para não mudar as estruturas. Mesmo quando muda as prioridades para beneficiar os mais pobres, deixa a impressão de estar interessado apenas nos votos deles, que são maioria do eleitorado. Quando vejo o PT eleito para a Câmara Municipal de São Paulo e o PT que ficou de fora, me convenço de que aquele partido que me emocionou 15 anos atrás não existe mais. Todo mundo continua tendo um pouco de PT, mas o PT está perdendo o PT que tinha dentro dele. Nelson Breve é chefe da Sucursal de Brasília da Agência Carta Maior NickeLeus Locus Pinellius Zemborian, também conhecido como CocoLoco, fã incondicional de rap, afoxé, heavy metal e música instrumental, é presidente do Departamento de Geloterapia Cibernética e Terrorismo Digital do Partido dos Revolucionários Flamenguistas.