[CamaraDas] Artigo: Demétrio Magnoli

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  • Date: Sat, 6 Sep 2014 06:16:51 -0300

Fogueiras da Razão

Política, ao menos na democracia, é diálogo. A condição para o diálogo é a
disposição genuína de ouvir -isto é, de mudar de ideia. O fanático não
dialoga, prega. Ele pretende converter o interlocutor, mas não contempla a
hipótese de rever suas próprias convicções. No fundo, almeja um poder
absoluto: moldar o outro segundo o figurino de crenças que selecionou como
verdadeiro. O artigo "Desvendando Marina", de Rogério Cezar de Cerqueira
Leite (*Folha*, 31/8), não desvenda a candidata do PSB/Rede, mas atesta a
virulência antidemocrática dos fanáticos da Razão.

O articulista classifica Marina Silva como uma fundamentalista cristã. No
universo da ciência política, o conceito de fundamentalismo religioso
aplica-se às correntes que exigem a subordinação das instituições públicas
e da vida civil aos dogmas de uma fé. Os fundamentalistas querem substituir
o livro das leis (o contrato constitucional) pela Lei do Livro (a Bíblia, o
Corão ou a Torá). Marina não é, portanto, uma fundamentalista -e, assim
como a teoria da evolução, tal conclusão não é uma questão de opinião.

O pensamento científico assenta-se sobre modelos e evidências, abrindo-se
ao teste da falseabilidade. Do alto de uma torre erguida com a argamassa da
arrogância, o fanático da Razão viola as regras que simula seguir, operando
por espasmos de subjetividade. Cerqueira Leite escandaliza-se com as
"crenças íntimas" de Marina, mas nem tenta apontar nas propostas políticas
da candidata alguma contaminação fundamentalista. Marina defende a
laicidade do Estado, sugere submeter o tema do aborto a plebiscito e
alinha-se com a decisão do STF sobre a união civil de homossexuais. São
posições semelhantes às de Dilma e Aécio, que também não reproduzem o
catecismo do movimento LGBT. No fim, o "desconforto" do Inquisidor da Razão
é com a liberdade de religião.

As grandes fogueiras da Igreja apagaram-se no passado, ainda que suas
brasas continuem queimando aqui e ali. No Ocidente, as fogueiras do último
século foram acesas por Estados totalitários que falavam a linguagem da
Razão. A URSS de Stálin e a China de Mao eliminaram milhões de pessoas em
nome da Ciência da História, que decifrara o enigma do futuro da
humanidade. A Alemanha de Hitler construiu as engrenagens do exterminismo
sobre o alicerce da Ciência da Raça, que prometia a salvação nacional no
Reich de mil anos. O fanático da Razão, tanto quanto o da religião, quer um
governo que administre as almas, não as coisas. Na democracia, contudo, as
almas não fazem parte da esfera de autoridade do Estado.

A pecha de fundamentalista religiosa lançada contra Marina circula no
submundo da internet, propagada por blogueiros governistas sustentados por
patrocínios de empresas estatais. Simultaneamente, e de acordo com uma
calculada lógica da duplicidade, o governo ensaia reativar um projeto de
lei que concede benefícios tributários às igrejas. Mas o Inquisidor da
Razão parece não sentir "desconforto" com a privatização partidária da
máquina pública nem com a transgressão do princípio elementar da separação
entre Estado e religião. Ele se incomoda, de fato, com "crenças íntimas".

Sou agnóstico. Acho graça nos mitos religiosos da Criação -e aborreço-me
com pregadores que têm a exagerada pretensão de retificar minhas "crenças
íntimas". Só existem superficiais diferenças de linguagem entre eles e os
intragáveis pregadores do ateísmo, que querem matar Deus, erradicando-o da
mente dos seres humanos. Uns e outros sonham com um Estado inquisitorial,
aparelhado para desentranhar as "ideias daninhas" que envenenam seus
concidadãos.

Marina já não é uma esfinge. A candidata divulgou um extenso programa de
governo, atravessado por tensões e não isento de contradições. Melhor
criticá-lo que acender uma fogueira com os galhos secos da árvore da
intolerância.


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*:::*
*Niquele*

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