[CamaraDas] Artigo: Contardo Calligaris

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Thu, 4 Sep 2014 15:52:27 -0300

Hipócritas ou crentes?

Tente proteger sua liberdade: você será mais livre se for governado por
crentes ou por hipócritas?

Imaginemos que você tenha uma preferência exclusiva para uma sexualidade
promíscua e coletiva: em outras palavras, você só gosta de orgias com
desconhecidos ou quase. Com apenas uma pessoa, a coisa, para você, não tem
graça alguma.

Essa fantasia, que anda pela cabeça de muitos homens e mulheres, não é
quase nunca exclusiva, mas, pela necessidade da nossa parábola, suponhamos
que seja.

Alguns dirão que seu gosto sexual não é conciliável com o funcionamento da
família tradicional (embora, sobre esse ponto, haja controvérsias). Outros
dirão que seu gosto ofende a moral e que, "portanto", ele deve ser proibido
por lei --isso, embora você só se envolva com pessoas maiores e capazes de
dar seu consentimento.

Então, você, com esse gosto quase exclusivo, pode escolher viver no país A
ou no país B. Os dois países têm uma composição parecida: um terço de
indiferentes, um terço de crentes e um terço de libertários.

Os indiferentes, como diz seu nome, não estão nem aí.

Os crentes tendem a pensar que o que eles consideram pecado deveria ser
proibido pela lei; assim, "generosamente", eles ajudariam os "pecadores"
--ou seja, forçariam quem discorda deles a viver como eles acham certo.

Os libertários pensam que tudo deve ser permitido, nos limites do Código
Penal e à condição que seja respeitada a liberdade de cada um.

Em síntese e por exemplo, o crente acha que sexo promíscuo e em grupo é
pecado e, "portanto", quer que o Estado impeça sua prática, feche os
lugares que o favorecem etc.

Ao contrário disso, você, que é libertário, acha que o crente deve poder
seguir sua religião, não deve ser "curado" de sua crença, nem obrigado a
participar de nenhuma orgia. Ou seja, para você, libertário, o Estado deve
interferir na vida privada só para certificar o consentimento de todos,
proteger o menor e garantir absoluta igualdade de direitos para todas as
diferenças.

Agora, imagine que os governantes do país A sejam crentes, e os governantes
do país B, libertários. Podendo escolher entre os dois países, você, com
seu gosto sexual exclusivo, escolheria o B, não é?

Pois é, engano: tanto no A como no B, a prática sexual do seu gosto está
proibida por lei. Como pode ser? O que aconteceu?

No país A, a explicação é simples: os governantes são crentes e representam
os crentes que os elegeram.

Mas, no país B? Você imaginava que os governantes libertários não gostassem
de regular a vida concreta de seus cidadãos. Talvez você tivesse razão, mas
acontece que os ditos governantes acham que eles precisam da aprovação dos
crentes de seu país para se eleger e, portanto, eles governam como crentes
(confiando que, mesmo assim, eles não perderão o apoio dos eleitores
libertários, que são os trouxas da história).

Em suma, para você, viver no país A ou no B seria a mesma coisa, pois nos
dois sua fantasia está proibida. A diferença é que, no país B, isso seria
efeito de governantes que escondem o que pensam e agem de maneira a receber
e conservar o voto dos crentes. Enquanto, no país A, isso seria efeito de
governantes que são mesmo crentes.

Moralmente, você pode até achar mais simpáticos os governantes crentes, que
não mentem e acreditam no que fazem. Só que no lote dos governantes crentes
há também os que acham bom apedrejar adúlteras, por exemplo.

Tente, portanto, pensar só em você mesmo: você estará mais livre com
governantes crentes ou com governantes hipócritas?

O drama é que você seja obrigado a essa escolha miserável, entre hipócritas
e crentes. Será que não existem governantes que nos tratem como gente
grande?

Parece que não existem governantes realmente laicos (e tanto faz que, em
sua vida privada, eles sejam religiosos ou não: laico, aqui, significa
decididos a garantir a liberdade de pensamento e comportamento de todos).

Para se eleger, o libertário renega suas ideias e se pavoneia em
manifestações constrangedoras de devoção por todo tipo de crença e culto.
De fato, até que surjam, um dia, políticos libertários não hipócritas, os
libertários não terão expressão política, pois os políticos crentes se
comportam como crentes, e os políticos libertários, também.

Caso seja preciso: qualquer semelhança da parábola dos hipócritas e dos
crentes com a situação atual no Brasil em época eleitoral NÃO é meramente
uma coincidência.

*:::*
*Niquele*

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